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Sábado, 20 de agosto de 2016

Mil entrevistados, em Porto Alegre e Pelotas, subsidiaram estudo sobre os efeitos do racismo na saúde mental das vítimas.

Ser abordada na rua e receber uma proposta de trabalho em casa de família, como empregada doméstica, ou confundida com uma trabalhadora da limpeza ao entrar em um restaurante (ao invés de ser reconhecida como cliente) é uma situação recorrente para as mulheres negras, independente de sua classe social ou formação. Mas os homens também não estão livres dos constrangimentos. Eles precisam conviver com o medo de serem abordados com truculência pela polícia ou sofrer a humilhação de serem considerados inferiores em diversas situações, como em uma prova ou uma seleção de trabalho. Estas e outras circunstâncias, entre uma série de fatores, demonstram o preconceito latente e a certeza de que o Brasil é, ainda, um país muito racista.

Para entender melhor este fenômeno, a professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, Raquel Silva da Silveira, decidiu pesquisar os efeitos do racismo na saúde mental da população negra. Implementado em 2015, com chancela do CNPq, o trabalho teve como base informações coletadas junto a cerca de um mil entrevistados, em Porto Alegre e Pelotas.

A professora Raquel, que é uma das coordenadoras do Centro de Referência em Direitos Humanos – Relações de Gênero e Diversidade Sexual (CRDH - Nupsex) da UFRGS, firmou parceria entre as áreas de Psicologia e de Saúde Coletiva da Universidade, de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e as secretarias municipais de Saúde de Porto Alegre e de Pelotas.  

“Em 2014, o CNPq e o MEC lançaram um edital específico para projetos que impactassem na implementação e avaliação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Uma das exigências era que os estudos fossem articulados com a gestão pública e movimentos sociais de mais de uma cidade”, explica a docente. “Na época, eu trabalhava com Gênero e Raça na temática de Violência Contra Mulheres, com foco no Direito, e achei essa uma ótima oportunidade de voltar o olhar para a Psicologia Social, que é minha área de formação”, completa. Foi a partir daí que surgiu a pesquisa Racismo Relações de Saber-Poder e Sofrimento Psíquico, que vem sendo desenvolvida por uma equipe de alunos da UFRGS, entre bolsistas e voluntários, e funcionários das secretarias municipais de Saúde, sob a coordenação de Raquel.

Ambos os grupos coletam informações junto a usuários e profissionais de unidades básicas de Saúde de Porto Alegre e Pelotas. A pesquisa é quanti-qualitativa, explica a docente. “Seu referencial teórico-metodológico se embasa na analítica do poder de Michel Foucault, nos estudos feministas de gênero pós-estruturalistas e dos feminismos negros, e nas teorias das relações raciais da psicologia social crítica.” Atualmente, estão sendo aplicados dois questionários, um deles com 19 perguntas, que se referem a situações de racismo cotidiano. O outro instrumento de avaliação é baseado no SRQ-20, criado para mensurar o nível de suspeição de transtornos mentais. “Perder o sono, ficar sem apetite, se sentir imprestável na vida, querer se matar, são sintomas de sofrimento psíquico em fase inicial”, exemplifica a coordenadora. Em Porto Alegre, serão entrevistadas 800 pessoas, sendo que os demais participantes serão ouvidos em Pelotas.

A ideia é criar espaços coletivos para os participantes da pesquisa conversem sobre os efeitos do racismo em seu cotidiano. “Incluímos no estudo, questões sobre o impacto do genocídio da juventude negra nas famílias negras das periferias: como estão as mães destes jovens, que ao sair de casa sabem que correm o risco de morrer nas mãos da polícia, por serem confundidos com assaltantes?”.

Sofrimento inicia na infância

Entre algumas respostas já coletadas, foi possível detectar que a incidência de racismo, pelo menos no Rio Grande do Sul, também é alta. A ponto de um usuário do SUS se negar a ser atendido em um posto de saúde, por causa da cor da pele do médico. “Temos como herança da escravatura a ideia de inferioridade, que faz, inclusive, que os professores tratem os alunos negros de forma diferente”, comenta Raquel. Ela destaca que, ainda hoje, há quem diga para crianças negras que elas precisam pentear o cabelo para ir à escola, e que elas não podem ir com o cabelo solto porque é feio. “São muitos os relatos, inclusive de crianças brancas ofendendo as negras, ou da solidão das jovens negras, que não são escolhidas para namorar ou casar. Elas até têm vida sexual, mas, na hora do compromisso, as mulheres brancas são preferidas.”

A pesquisadora observa que o fato da pele clara ser, socialmente, “mais valorizada”, faz com que a pessoa negra sofra o efeito das políticas de branqueamento. E ainda que o sistema de cotas esteja influenciando na mudança de perfil dos alunos das universidades, “a maior parte dos estudantes cotistas não é negra”, observa Raquel. “Pelo menos na UFRGS, 80% dos cotistas são brancos.” A docente reconhece que os estudantes negros “sofrem muito racismo”, não só por parte de colegas, mas também por parte de professores.

Temática do racismo tratada como tabu

Criada na Cidade de Deus, uma das mais famosas favelas do Rio de Janeiro, a judoca Rafaela Silva, de 24 anos, campeã mundial em 2013 e vice em 2011, chegou a pensar em desistir do judô, devido às muitas manifestações de racismo que teve de enfrentar após ser desclassificada nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Nas redes sciais, chamada de “macaca” e que seu lugar era “na jaula”. O episódio traumático afetou a atleta emocionalmente. De volta ao Brasil, Rafaela entrou em depressão e ficou cerca de dois meses sem pisar no tatame. À época, seus treinadores fizeram de tudo para que ela voltasse a competir, já que era uma das principais promessas do judô brasileiro. Quatro anos depois de ter sido vítima de racismo, Rafaela conquistou medalha de ouro nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil em 2016. 

“Em toda minha formação de graduação e mestrado, nunca li uma linha sobre racismo, e estudei o desenvolvimento humano como se fosse uma coisa abstrata”, comenta Raquel. Segundo ela, ainda que se pense na Psicologia em um contexto social, quase nunca a temática das relações raciais e étnicas é considerada. “E é muito diferente a relação de uma criança negra com a sua auto-imagem, pela baixa representatividade que os negros têm na mídia. Nesse momento, o movimento negro está forte, mas ainda se conta nos dedos os personagens de filmes, histórias em quadrinhos, os  médicos, repórteres, advogados, que atuam. E mesmo estes poucos, volta e meia, sofrem discriminação.”

O sofrimento foi, justamente, um dos motores que levou a estudante de psicologia da UFRGS, Jéssyca Barcellos, a realizar seu trabalho de conclusão de curso sobre os currículos das faculdades de Psicologia em Porto Alegre e Região Metropolitana. Segundo ela, de 18 cursos analisados, apenas seis apresentaram alguma cadeira com a temática racial, sendo que, em apenas um, esta disciplina é obrigatória. “Isso é muito ruim, pois vai interferir no momento em que estes futuros psicólogos forem atender pacientes vítimas de racismo.” Nem o fato de alguns cursos possuírem uma cadeira por semana, na visão de Jéssyca, é suficiente para que o tema seja tratado como deve.

Preparando-se para trabalhar como voluntária na pesquisa do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS, Jéssyca tem um objetivo: potencializar a inclusão da temática das relações raciais na formação em Psicologia. “Farei meu mestrado, focada nisso.” A recém-formada, que é negra, admite que, diversas vezes, já sofreu a violência psíquica do preconceito. “É horrível passar por alguém na rua, e esta pessoa fazer cara feia ou agarrar a bolsa, ou ir ao shopping e ser perseguida pelo segurança.” A dificuldade de conviver com a rejeição afetou Jéssyca desde pequena. “Na adolescência, eu queria ser branca e vivia alisando o cabelo”, conta. 

Como a maioria dos profissionais de Psicologia é formada por pessoas brancas, que nunca sofreram racismo, poucos têm ouvidos para perceber que isso causa sofrimento, observa a professora Raquel. “Nossa pesquisa não deve mostrar grandes novidades, pois muito já se tem relatado. Mas esperamos poder contribuir com elementos epidemiológicos, que ajudem a impulsionar as políticas públicas voltadas para a população negra. Uma boa saúde mental só é possível com relações sociais saudáveis, o que inclui educação, segurança, moradia, pobreza, entre outros aspectos”, defende. 


Texto:Adriana Lampert
ADverso/Edição 221 - Julho/Agosto - 2016